Película vs. Digital - entre o caos e a grade

Película vs. Digital - entre o caos e a grade

A fascinação pelo orgânico e por que nem tudo se resume a pixels perfeitos

Em cada campo do conhecimento, há sempre algumas discussões que nos envolvem de maneira especial. Desde que comecei minha carreira no cinema, uma das que mais me chamou a atenção diz respeito ao embate entre película e digital.

Eu sou um filho da revolução digital. Desde que me entendo por gente — até antes, de acordo com meus pais — sempre fui aficionado por tudo o que envolvia tecnologia: sempre gostei de montar, construir e inventar ferramentas no meu dia a dia.

Isso, por si só, talvez já fosse o bastante para me colocar do lado dos defensores naturais do "digital"; mas, além dessas minhas idiossincrasias, aconteceu que meu envolvimento com o audiovisual se deu justamente no ápice da transição para a cinematografia digital. Com câmeras cada vez mais potentes e baratas, quando cheguei ao cinema, a película já nem era mais cogitada para a absoluta maioria dos projetos.

Mesmo assim, ouvi muitas vezes opiniões sobre uma suposta superioridade estética da captação em película. Grandes diretoras, cinematógrafos, críticos de cinema — pessoas com muito mais experiência e conhecimento do que eu — falando em alto e bom tom: não há o que supere a película.

Para além de uma interpretação de estética mais subjetivista, essa repetição sempre me deixou com a pulga atrás da orelha. Como eu sempre assumi a posição de early adopter, imaginei que se tratasse de um saudosismo; um apego conservador a uma tecnologia em vias de substituição, tal qual vimos com o jornal impresso. Afinal de contas, como seria possível imaginar que uma tecnologia centenária seria capaz de superar o que há de mais avançado neste mundo de semicondutores de silício?

À medida que fui aprofundando minha compreensão técnica sobre o assunto, percebi alguns comportamentos peculiares. Ora, se o digital é tão superior, por que grande parte dos maiores filmes do mundo ainda é gravada em película? Ou, de maneira ainda mais intrigante, por que tanta gente insiste (eu incluso!) em adicionar "grãos" na pós-produção? O que há na película que a torna tão diferente do que nossos melhores sensores conseguem captar?

Há, é claro, uma resposta para isso — e ela torna, na minha opinião, a questão bastante simples.

Considere um círculo perfeito. A imagem abaixo pode servir como um ponto de partida.

Círculo Perfeito

Um círculo matematicamente perfeito

Quando você o observa de perto, percebe detalhes sutis, linhas contínuas e curvas suaves; afinal de contas, é um círculo perfeito.

Agora imagine que esse círculo perfeito existe materialmente — e que você precisa registrar uma imagem dele com uma câmera.

Uma imagem de câmera, ou fotograma, é sempre uma interpretação parcial (e nunca neutra) da realidade concreta que representa. Como tal, ela sempre passará por uma mediação tecnológica para existir, e a estrutura desse aparato influenciará diretamente essa representação.

Círculo Digital

Observe a grade regular de pixels

Se você usar uma câmera digital, o fotograma gerado terá qualidades bem específicas. Sensores digitais são precisos e uniformes, resultado de sua configuração como um conjunto de fotossítios dispostos numa grade matemática. Em virtude dessa estrutura, toda imagem gerada por essa arquitetura terá, predominantemente, o que podemos chamar de espaçamento isotrópico.

Renderização de um sensor de câmera digital

Renderização de um sensor de câmera digital (fora de escala)

Hoje em dia, câmeras digitais conseguem gerar fotogramas com nitidez e clareza extremas; nossa capacidade tecnológica de alcançar tamanha uniformidade, em escala tão minúscula, é impressionante. Mas é justamente essa precisão (e o trocadilho é intencional) tão grande que, às vezes, pode nos transmitir uma sensação de artificialidade.

Agora imagine que você vai registrar nosso círculo usando uma câmera de película. Ao contrário dos milhões de pixels que dominam o mercado atualmente, o processo de captação e revelação depende de uma série de interações químicas. Ao olhar para um filme registrado em película, você não vê uma grade fixa e regular de pixels, mas, sim, milhões de minúsculos cristais de halogeneto de prata, espalhados de forma muito mais irregular pela emulsão fotográfica.

Renderização de cristais de halogeneto de prata

Renderização de cristais de halogeneto de prata

E é essa organização caótica que torna a película mais próxima da nossa experiência sensorial do mundo. Ela é organizada de maneira anisotrópico— ou seja, de forma que depende do ângulo ou direção em que se observa.

Essa disposição caótica cria uma textura orgânica, imprevisível e fascinantemente imperfeita. Cada fotograma é singular, rico em detalhes únicos e inesperados. Mesmo quando digitalizado no DI, ainda que cada imagem se torne naturalmente mais isotrópica, suas características de aparente "organicidade" tendem a permanecer, a depender da resolução de captura.

É exatamente por isso que muitos cineastas descrevem a película como algo "orgânico" ou "vivo": cada quadro parece respirar suavemente, sempre levemente diferente do anterior. Essa anisotropia é o que confere à película sua famosa organicidade.

Círculo em Película

Note a estrutura granular orgânica

A distinção entre uma organização isotrópica e uma anisotrópica é o que permite compreender por que, mesmo em fluxos totalmente digitais, tantos cineastas buscam recriar esse efeito na pós-produção, adicionando "grãos" às imagens. Ao inserir esses grãos artificiais, eles tentam romper a previsibilidade isotrópica do digital, aproximando as imagens da realidade visual e emocional que tanto admiramos na película.

No fim das contas, essa predileção generalizada pela imagem capturada em película não acontece por acaso; ela é fruto de uma identificação maior com as "imperfeições" que elementos orgânicos apresentam naturalmente. Compreender isso nos permite notar como o debate entre película e digital é muito mais profundo do que uma mera questão de preferência ou uma oposição superficial entre "tradicional" e "moderno".

À medida que a evolução tecnológica avança, a tendência é que os sensores digitais se tornem cada vez mais capazes de capturar sutilezas e texturas microscópicas, aproximando-se gradualmente das variações anisotrópicas que tanto nos fascinam na película. Trata-se, afinal, de uma questão de amostragem: quanto mais amostras tivermos do objeto, melhor será nossa capacidade de representá-lo de forma objetiva.

Isso, contudo, não indica a extinção da película que detém algumas vantagens inegáveis, especialmente em questão de arquivamento. Embora vivamos num mundo de zeros e uns, ainda não há tecnologia tão segura e robusta para a guarda de nossos filmes quanto a película, que pode atravessar gerações (como já fez) se armazenada corretamente. Atributos como esses contribuem para que ela ainda se apresente como uma alternativa viável para a produção contemporânea de filmes.

Em última análise, a escolha entre os dois formatos não precisa ser encarada como uma competição irreconciliável. Reconhecer as particularidades de cada meio — a textura e a sensação de "vida" da película versus a praticidade e a versatilidade do digital, em constante evolução para capturar nuances cada vez mais próximas da realidade sensorial — permite que cineastas e diretores de fotografia façam escolhas mais conscientes e sensíveis. Assim, é possível extrair o melhor de cada tecnologia, garantindo que a magia do cinema continue a encantar, surpreender e emocionar, independentemente dos avanços que o futuro possa trazer.

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RK

Ricardo Krug

DIT / GMA